Publicado originalmente em 2007 (Les neurones de la lecture), o livro investiga como o cérebro humano aprendeu a decodificar a linguagem escrita, uma invenção cultural recente que transformou profundamente a forma como pensamos, comunicamos e aprendemos.
Dehaene demonstra que o cérebro não nasceu preparado para ler. Para isso, ele precisou “reciclar” circuitos neurais antes usados para reconhecer rostos e objetos, atribuindo-lhes uma nova função: identificar letras, sílabas e palavras. Essa hipótese, conhecida como reciclagem neuronal, é uma das descobertas mais importantes da ciência da leitura, pois explica como regiões do cérebro se adaptam culturalmente à alfabetização.
O autor também apresenta o funcionamento da chamada “área da forma visual da palavra”, uma região do córtex occípito-temporal esquerdo responsável por reconhecer padrões ortográficos e associá-los aos sons da fala. É a partir dessa integração entre o visual e o fonológico que o cérebro se torna capaz de ler fluentemente. Essa compreensão derruba a crença de que a leitura se aprende de modo natural ou espontâneo. Ao contrário: ela requer ensino explícito e sistemático das relações entre grafemas e fonemas, fundamento do método fônico e da alfabetização estruturada.
Na resenha publicada pela professora Ana Cláudia de Souza na revista Lingüística (UFSC, 2013), o livro é descrito como uma obra que une o biológico e o cultural. Ler, segundo a autora, é um ato de invenção e produção de sentidos, mas essa liberdade interpretativa só é possível quando o leitor domina o código escrito. Dehaene reafirma que não há oposição entre biologia e cultura: “não é o cérebro que evoluiu para a escrita, mas a escrita que se adaptou ao cérebro”. Esse pensamento redefine a alfabetização como um processo de reorganização cerebral, e não apenas como uma etapa escolar.
A partir das evidências trazidas pela neurociência, o livro questiona a eficácia dos métodos globais e das abordagens não estruturadas que ainda predominam em muitas escolas. Ao ignorarem a forma como o cérebro aprende, essas práticas acabam perpetuando as dificuldades de leitura e escrita, sobretudo entre crianças com dislexia, TDAH e outros transtornos do neurodesenvolvimento.
Dehaene demonstra que a leitura se consolida em três fases cognitivas: pictórica (reconhecimento visual), fonológica (associação som-letra) e ortográfica (automatização). Só quando essa sequência é respeitada é possível alcançar fluência e compreensão.
Por isso, Os neurônios da leitura vai além da teoria: ele oferece caminhos concretos para a formação de professores e o redesenho das práticas de alfabetização. Ao defender o ensino explícito, o autor não propõe rigidez, mas sim respeito à ciência do aprender, algo essencial quando pensamos em equidade e inclusão.
Essa obra me toca profundamente porque confirma, em bases científicas, o que vivi como mãe e educadora. Vi meu filho, com dislexia, sofrer na escola até o 3º ano sem conseguir ler nem escrever, não por falta de inteligência, mas porque a escola não utilizava um método inclusivo, baseado na forma como o cérebro realmente aprende. Foi essa dor que me fez buscar respostas na neurociência e me motivou a criar soluções pedagógicas que unissem ciência, afeto e propósito, para que nenhuma criança precise passar pelo mesmo caminho de frustração que o meu filho percorreu antes de aprender a ler.
Aprender a ler e escrever é um direito humano inegociável.
Marília Teófilo
Referências
DEHAENE, Stanislas. Os neurônios da leitura: como a ciência explica a nossa capacidade de ler. Porto Alegre: Penso, 2012.
SOUZA, Ana Cláudia de. “Resenha de Os neurônios da leitura.” Lingüística, v. 29 n. 1, p. 245-252, 2013. Universidade Federal de Santa Catarina.
CHANGEUX, Jean-Pierre. Prefácio em Les neurones de la lecture, 2007.